No mês de setembro a Igreja celebra o mês da Bíblia. Trata-se de celebrarmos a Palavra de Deus como um sinal da comunicação Dele que atravessa todos os tempos, culturas e línguas, se comunicando desde o hebraico, grego, latim e nas línguas vernáculas e o braile, demonstrando o quanto os textos sagrados que nos reforçam os vínculos desse Deus que nos ama e se comunica profundamente com suas criaturas.
Desde a escrita do decálogo nas tábuas da Lei escritas por Moisés, passando pelos relatos e experiências da caminhada no deserto rumo à terra prometida e, depois de aí introduzidos, o Povo de Deus vai contando os feitos de Deus e os colecionando em escritos que nos chegaram aos dias atuais, e que inúmeras descobertas arqueológicas vão confirmando como fatos reais já patrimônio de populações antigas.
Depois, num tempo que o Pai determinou, o Filho se encarna, assumindo a condição humana, exceto no pecado, e vivendo entre os humanos usa de uma pedagogia que ensina através de atos e palavras como é o Reino de Deus, nos mostrando como é a definitiva terra prometida, ou seja, a eternidade. E Jesus nos ensina para nos preparar, e nós nos congregamos como Igreja, para tornar essa realidade um fato entre nós.
De tal modo, agindo Jesus na história humana Ele a transcendentaliza para se construir como historia sagrada, e para tal deixa aos seus seguidores a missão de recontar e reviver o que ele viveu e ensinou. Neste sentido, os primeiros cristãos, oriundos de uma tradição judaica vão juntando os ensinamentos do antes de Jesus (o antigo Testamento) e vão recontando uns aos outros a novidade que o prometido Messias anunciou, de modo que a seguir passam a escrever textos (o novo Testamento) que são distribuídos e guardados pelas comunidades como relatos sagrados dos ensinamentos e experiência de Jesus, e com isso, a partir dos textos sagrados que na Bíblia lemos, recordamos as ações de Deus na história da humanidade, nos incluindo, portanto na historia desse Deus Conosco.
Assim, as comunidades se reuniam para celebrar a eucaristia, partilhando também da mesa da Palavra de Deus, de forma que a liturgia ganhava uma expressão celebrativa que fortalecia a vida comunitária. E cada um levava em sua mente e seu coração frases, trechos ou até mesmo o texto inteiro para suas casas e com esses oravam e meditavam até a próxima Eucaristia, quando renovariam seu patrimônio textual. Era assim que a palavra de Deus se transformava em alimento espiritual que nutria a vida da comunidade, que espiritualizava a pessoa humana.
São palavras de vida que devem ser lidas e relidas com uma disponibilidade de coração, a tal ponto de constituírem também uma dimensão de nossa espiritualidade, seja como monges e monjas, como quanto demais fieis. Para tal não basta o ter a Palavra de Deus em casa ou nas mãos, é preciso meditar sobre cada letra ali escrita, tornando-a uma realidade de busca de ensinamentos para a vida. Ritualmente, abrimos essa Palavra de Deus e a saboreamos em seu conteúdo com a cognição que o uso dos sentidos do tato, da visão e da audição nos favorecem para realizarmos nossa liturgia do celebrar a comunicação de Deus através dos textos sagrados, que agora ganham força de celebração de louvor. Assim, meditamos tal conteúdo aproximando-o de nossa própria história, para aí introduzir a mesma a convicção de que há uma constância de amor e presença, que Deus manifestou na história humana em outras épocas, tudo isso para entender que essa comunicação de Deus conosco é uma ininterrupta comunicação, isto é, transformamos todo esse percurso ritual em contemplação que se estende sobre o tempo do nosso existir, e mais, reconhecemos Esso como um serviço de louvor ao Criador.
A Comunicação de Deus conosco está escrita em nossas muitas línguas, para podermos entendê-la de maneira mais clara. Assim, ouvimos a palavra de Deus e a colocamos em prática dentro das nossas próprias histórias de vida, se revelando como o nosso ensinamento sagrado para nos ajudar na escrita das páginas da história nossas vidas, de modo que a história de Deus se comunique com a história humana, descobrindo em muitos aspectos em iguais dimensões culturais e existenciais de outros. Então podemos dizer que nada é novo. Senão a graça de Deus que para cada pessoa, no seu tempo, se faz como a novidade.
A leitura e escuta da Palavra de Deus, seguida de sua interiorização que é uma forma de meditá-la, nos abrem o espírito para fazer brotar nossas orações, isto é, fazer com que a força da Graça de Deus nos atinja porque Nele confiamos e a Ele oramos, entregando-lhe nossos sofrimentos, angústias, pedidos, interseções, alegrias, louvores e tudo mais o que, em nossa condição de criaturas dependentes do poder e ação do Criador, manifestar-se-á como realidade mística de desejo de transcendência.
Não podemos deixar passar esse momento de graça em que a Palavra de Deus nos orienta a vivermos uma vida segundo seus ensinamentos. E podemos reler estas lições sagradas, relendo as Sagradas Escrituras, não apenas neste mês, mas por todos os dias.
A propósito, à leitura da Palavra de Deus os monges dão um nome muito especial que define uma ação de íntima união com Deus. Trata-se da Lectio Divina, que na verdade se constitui como um exercício espiritual que alimenta a vida deles, devendo ser além de uma dimensão comunitária, uma exercitação individual. Deste modo, a Lectio Divina se constitui como um patrimônio espiritual para o monaquismo em todos os tempos e reflete autenticamente traços de uma espiritualidade monástica.
Aliás, São Bento instrui a observância da vida monástica sobre os alicerces da leitura, meditação, oração e contemplação da Palavra de Deus, se preocupando que o monge de fato faça sua Lectio Divina como uma exercitação espiritual cotidiana. E o monge deve fazer isso como sua resposta vocacional, do sua resposta de seguimento de Cristo. Eis então o exercício espiritual, que muito embora seja ressaltado nas comunidades católicas com a dedicação solene de um mês específico, deve avançar sobre todos os dias da vida de uma pessoa e das comunidades, conferindo à Palavra de Deus um lugar e um tempo especiais.
D. Robson Medeiros Alves OSB
Prior do Mosteiro de São João Gualberto